sábado, 22 de março de 2008

sobre o amigo Antônio Mercado


Hoje me lembrei de um grande amigo e mestre: Antônio Mercado.

Ele cruzou minha vida (ou eu a dele) num momento bem decisivo, há 10 anos atrás. Na época, eu era estudante de cinema na USP, e havia recém-descoberto que o mundo não se restringia à sala de produção da ECA. Militava ardorosamente no Movimento Humanista (onde estou até hoje) e passei a questionar, entre tudo o que fazia, o papel da arte e do artista.

Até que resolvi “filar” sua aula, direção de atores. Esse era somente o título da matéria, porque o conteúdo era algo muito maior. A cada manhã, eu saía plena, sempre com a sensação de ter roçado em algo que sempre procurei, porque não só a carga de informações que ele generosamente nos transmitia era muito consistente, mas também sua humanidade. Era a primeira vez, por exemplo, numa escola de artes, que alguém falava sobre posicionamento artístico, do que buscamos com o que fazemos. E nada parecido com os modelos “mestre Yoda”, pelo contrário. Ele não fazia força para ser referência, no entanto, lá estávamos nós, sempre uns cinco ou seis da turma, segurando-o na conversa até uma hora além do término da aula.

Eu tinha um privilégio: Ainda dava carona, e podia contemplar mais uma hora de diálogos exclusivos...

Juro que não é tietagem. Quem o conheceu, sabe desse poder que ele tem de abrir dentro da gente um lugar especial. E isso não acontecia somente pelo que ele dizia, pelas histórias que contava (entre elas, seus tempos como advogado criminalista quando, junto a outros como ele, libertou vários presos políticos na época da ditadura militar). Havia uma aura em que se podia intuir tudo o que ainda não tinha sido dito. Porque ele foi uma pessoa que se lançou à excelência do seu trabalho, não teve receio de ir além dos limites, e isso transparecia. Ele nunca disse, mas eu sempre soube.

Na época, antes de conhecê-lo, eu quase desisti de tudo. Estava frustrada com as brigas dentro do curso, com a pouca profundidade do que eu fazia, e comecei a crer que o mundo precisava de coisas mais urgentes. Comecei a questionar o que eu estava fazendo com minha vida, e tudo me parecia uma grande egotrip.

Ao mesmo tempo, aquelas manhãs sempre me deixavam um gosto de uma estranha alegria, como um afago na alma. Como se meu carrasco interno tirasse um cochilo na presença do Mercado. Como se eu vislumbrasse que sim, eu poderia fazer algo pelo mundo escrevendo, criando. E que esse meu "compromisso com o mundo" que se contrapunha à vida artística era um puta medo de errar e ser plenamente o que eu era. Que sim, eu poderia assumir minha vocação sem culpa. Porque vocação, quando é verdadeira, é uma correnteza que te busca onde você estiver e te arrasta sempre. Lutar contra isso era terrível.

O Mercado também me ensinou (sem falar) que estar no mundo, dentro das estruturas, não necessariamente é se vender. O Mercado me fez ver que o “mercado” é mais um campo a ser transformado, se você não acredita nele. Ele contou da sua experiência na Rede Globo, imagine...Dele e de tantos outros que usaram o veículo com fins revolucionários, que tiveram estômago e fígado para isso.

O Mercado, então, foi implacável: me desnudou de todas as minhas desculpas.


Sem dizer nada, sua simples existência em minha vida me fez vislumbrar um possível destino em que eu realizava plenamente o que vim fazer: CREAR. Gerar vida a partir do nada.

Hoje, ele está lá em Portugal. Já faz um tempo grande que ele cruzou o mar levando com ele a vontade de realizar que pulsava sempre. Já faz um tempo que não nos falamos, pode até ser que agora ele seja um jogador de pôquer famoso, um dionisíaco dono de reustaurante à beira-mar, um artesão de sapatos, aparador de bigodes, mas ainda aposto que ele segue pisando firme nos palcos. E eu, depois de ter gerado um filho e algumas peças, sempre me surpreendo, às vezes como um assalto, com a sua presença em minha memória. Talvez ele já tenha se convertido, dentro de mim, em um guia. Porque aquelas manhãs na ECA deixaram um cheiro estranho, que é um forte antídoto aos momentos de desânimo, aos momentos quando novamente cedo à pressão do carrasco e deixo de realizar o meu destino.


Um cheiro de permissão para ser. Integralmente, ser-se. E viver o que se é.

Caro amigo, te serei eternamente grata. À sua existência no mundo e à sua permanência nas minhas lembranças de todos os dias.

3 comentários:

Jorge Louraço Figueira disse...

Pois é, ele continua a servir de inspiração ética e artística, mesmo do lado de cá do atlântico... Bonitas as tuas palavras. :) Beijos!

RG disse...

Adorei este texto! E vivas ao google que me trouxe aqui para partilhar essas lembranças. Rodrigo

Patrícia Portugal disse...

Adorei ler isto! Quem conheceu o António Mercado, percebe perfeitamente as suas palavras! Obrigada por me fazer voltar atrás no tempo! Patrícia