quinta-feira, 13 de março de 2008

quando grávida (dez luas)

O que isso tem a ver com todo o resto da matéria viva?
Tudo.
Mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que o medo era maior. Não me pergunte do que, porque quando se tem medo nem se sabe, é só um ar dilatado impedindo o ar de verdade. Teme-se tudo, porque no fundo a gente se sabe mudança constante. E o medo cria uma ilusão de pintura na parede. Sem perspectiva, cor ou forma. O medo cria as ameaças, o poder estabelecido, a fuga de si, a necessidade de quem manda (pra onde?). O medo é o capacho do desejo de permanecer. O medo tem nomes toscos e imperativos que mudam ao longo da história (Nero? Bush? Quantos...), mas também tem marcas individuais criando esses pequenos nomes dentro de cada vivo. Nos vivos que se sabem vivos, os humanos, ele cria história regressa.
O oposto do medo é a coragem. Coragem, coração, peito aberto que pulsa e marca o ritmo do movimento, que nunca é quadro parado. Nada mais lindo e temível (para os que têm medo) que um coração pulsando. Talvez daí venha o medo das bombas de onde nascem as guerras, porque o coração é bomba de onde nascem luzes.
Mas antes da visão do coração pulsando, o saber-se recheada de vida. Não só o impulso vital de todos os dias, mas uma vida alheia, alma outra que quis vir nessa Terra-universo-espaço-tempo por meu intermédio. E antes da cena do coração pulsando no ultrassom, um banho infinito, talvez o maior da minha vida, o banho após a notícia de se saber agora outra, agora grávida, me disse mais do que a imagem cinza e enigmática do ultrassom. E uma voz doce desceu de algum lugar de onde vozes doces vivem e, no meu coração acelerado e feliz e de repente perdido e sem acreditar, encheu de matéria fé um corpo que jamais seria o mesmo, um espírito que, já em construção (o meu), jamais será o mesmo. A voz cantou um canto sem palavras prenunciando o retiro dos próximos nove meses. O que a voz cantou eu entendi a prestações, mês a mês, ao perceber que gravidez não é só espera, são encontros.
O começo é a novidade com terremoto do corpo. Tudo se reajusta, provando que sempre há espaço pro que se deve nascer na gente. As vísceras vão cedendo espaço, mas como são melindrosas (porque nós as carregamos desses sentimentos não resolvidos), dão gritinhos mal-humorados. Mas nessas horas a gente, com dois corações pulsando, acha coragem em dobro. Essa coragem escorre até os dedos dos pés, que se liquidificam e escorrem pela terra, por mais que se use sapatos. Vira um líquido que, em contato com a terra, por mais que se pise em cimento, assume formato raiz. E todos os cantos internos de todos os cantos não revelados sobem por ela como seiva, numa ação contrária à gravidade, alimentando o espírito. Esses cantos são os hinos entoados mês a mês, e apenas ouvidos se a coragem tiver silenciado o medo do novo. A gente cala o cotidiano, cala as conversas inúteis, acho que até o ouvido deve crescer um pouco, de tanto que talvez se escuta. Digo talvez porque não é óbvio, é tão sutil que escapa ao menor retrocesso à vida anterior. Mas os dois corações ajudam. Às vezes a gente até solta um rugido que escapa de alguma herança perdida, lembrando que só somos gente por ser de outra espécie e por escolha, mas que o impulso está lá, para quando se quiser tomar contato. Então é o canto da terra com o tambor duplicado no peito o que, durante esse tempo nos coloca em estado de graça, e também nos desestabiliza, enquanto nosso corpo vai se tornando lua. E os contatos também ficam sutis, com a alma de quem vem, com a alma do pai que assiste à revolução em tempo lunar mudando também o seu calendário. E assim como a terra muda as marés com a lua, o pai deixa-se tomar (caso queira também cair na correnteza da vida) por essas ondas gigantes, vivendo uma trindade ainda secreta entre dois mundos.
De tudo, só é necessário querer o que é vivo e humano. Em si e nos outros.
São três momentos. Gestação, parto, maternidade. Cada um com canto próprio. Agora o que experimento é o final do primeiro ato. As últimas notas, as últimas viradas da lua.
Não é um mês. São semanas
Não, não são semanas. São dias. Dias não!
Horas...
(Oras)
Horas perdem os contornos. Nada mais se conta em unidades de tempo.
....
É um longo tempo...
Talvez não pela ansiedade ou pela demora...mas por, talvez, se esperar que a cada momento a vida irrompa a realidade cotidiana, e é preciso estar atento, é preciso estar desperta, preparada, em prontidão de pássaro antes do tiro, vive-se o último mês como se deveria viver sempre, atenta e grata pela morte iminente, pelo nascimento iminente, pela vida, o presente, enfim.

Um comentário:

Cátia disse...

Eu já tinha lido esse texto, ele é lindo ! E por razões óbvias, nesse momento, me identifico mto com ele.
Bjo p vc, Claudia