sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

primeira gira com Clarice

(trechos da peça teatral "No Gosto Doce e Amargo das coisas de que somos Feitos", sobre obra de Clarice Lispector. Direção de Nill Amaral)

ATRIZ 1
Deixe ver...seu futuro...(faz um suspense)...Olha, você tem dois caminhos possíveis...Um é por ali (aponta para a direita)...Não tem muitas pedras. Tem uma cachoeira linda, linda, uma vez que você chegue lá não vai querer sair mais. Muitos recursos materiais também. Não tem muita gente, você não corre o risco de cruzar com pessoas desagradáveis. Nenhum grande amor, mas tem aqui um casamento bem sólido. Nenhum grande sofrimento, nenhum grande risco, é um caminho bastante seguro. Vida longa.
(pausa. Olha a reação da pessoa)
Agora esse outro (aponta para a outra direção)... Olha, não dá pra ver direito... Tem muito vento, é um caminho de muito vento. E muita chuva seguida de sol. Mas esse vento...não dá pra ver muito. Você é que sabe, se quer arriscar...

Atriz pega de volta a xícara. Olha para longe

ATRIZ 1
Um vento...Igual a esse. É raro ver um vento assim, suave e intenso. Dá vontade de sorrir. Já repararam que sorrimos em público do que não sorriríamos se ficássemos sozinhos? Eu, por exemplo, não gosto de rir de piadas, o que dificulta muito sentar numa roda com pessoas a certa hora da noite. Mas gosto de rir com o vento, coisa que ninguém entende.


ATRIZ 2
Eu gosto de rir quando eu chupo manga e fica aquele fiapo no meio dos dentes

ATRIZ 1
Eu gosto de rir quando eu vejo um cachorro chupando manga. Você já viu um? É uma coisa horrível!

ATRIZ 3
Eu gosto de rir quando eu vejo alguém com a roupa do lado avesso sem perceber

ATRIZ 2
Eu gosto de rir quando eu canto

ATRIZ 1
Eu gosto de rir no cinema vendo filme que todo mundo chora

ATRIZ 3
Eu gosto de rir no elevador

ATRIZ 2
Eu gosto de rir escovando os dentes

(podem ficar um tempo nesse jogo)

ATRIZ 1
Eu gosto de rir no vento

As três começam a brincar de pega-pega. O texto vai sendo dito nessa brincadeira, revezando entre elas. A cena vai num crescente.


ATRIZ 1(PARADA)
Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é.
É um cavalo preto e lustroso, inteiramente selvagem : nunca morou antes em ninguém ou nunca lhe puseram rédeas nem sela .

OUTRA ATRIZ (NO JOGO)
Eu gosto de rir em enterros.

ATRIZ 3 (PARADA)
Apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho.
Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito.

OUTRA ATRIZ (NO JOGO)
Eu gosto de rir soluçando.

ATRIZ 2 (PARADA)
A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aquilo que não tem nome: é só chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai.

OUTRA ATRIZ (NO JOGO)
Eu gosto de rir na frente do espelho

ATRIZ 1 (PARADA)
Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.

Atriz 3 toma o lugar parado de Atriz 1, mas interrompe a brincadeira.

ATRIZ 3
Eu preciso confessar um segredo a vocês...

As outras duas continuam o jogo, alheias

ATRIZ 3
Eu preciso confessar um segredo a vocês!

As outras duas seguem o jogo.

ATRIZ 3
Eu não sei como rir.

As duas param de correr

ATRIZ 2
(constrangida)
Eu também não.

ATRIZ 1
(constrangida)
Eu também não.

Tempo

ATRIZ 2
Mas a gente não estava rindo?

ATRIZ 1
A gente estava rindo?

ATRIZ 3
Não há tanto problema nisso. Pelo menos, no fim do dia, não corro o risco de me arrepender de ter sido idiota. Eu durmo bem assim, mesmo com a luz apagada.

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