sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

terceira gira com Clarice

AS ESTRELAS, A AREIA, AS VISCERAS E O MAR

Duas atrizes, deitadas numa cadeira de cabeça para baixo, cabeça voltada para a platéia, como se olhasse um céu estrelado.

Ao fundo, Homem e Mulher


ATRIZ 1
Estrelas morrem, né? Acabam!

ATRIZ 2
Elas já estão mortas, na verdade. Algumas.

ATRIZ 1
Mas se a gente vê, não estão vivas?

ATRIZ 2
Lá onde elas estavam, já morreram. É a luz que chegou aqui.

ATRIZ 1
Tem gente que pede coisas pras estrelas

ATRIZ 2
Pede pra quem? Pra Deus?

ATRIZ 1
Pra estrela mesmo...Acho que se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa parecida com uma estrela tremula dentro da gente.

ATRIZ 2
Então o pedido é pra gente...

ATRIZ 1
A gente pede por aqui (aponta para o coração), no momento em que o ar enche o peito.

ATRIZ 2
Como é que se pede? E o que se pede? Pede-se vida?

ATRIZ 1
Pede-se vida.

ATRIZ 2
Mas já não se está tendo vida?

ATRIZ 1
Existe uma mais real.

ATRIZ 2
E essa aqui é o que então? Faz de conta?

ATRIZ 1
Mais ou menos isso.

ATRIZ 2
Mas se é faz de conta a gente pode ser o que quiser

ATRIZ 1
Essa vida que a gente é o que é não é faz de conta, essa é a real

ATRIZ 2
Então por que não é todo mundo que vive?

ATRIZ 1
Porque é tão livre que aterroriza

ATRIZ 2
Você é livre?

ATRIZ 1
Eu faço de conta que sou.

ATRIZ 2
Ah...

Atriz 1 levanta se primeiro, antes do termino do movimento seguinte, atriz dois levanta depois, atriz 1 começa espalhar areia pelo espaço, atriz 2 entra no jogo e a acompanha. Aos poucos, vai se configurando uma espécie de praia.

ATRIZ 2
Então faz de conta que as estrelas do céu caíram na terra como grãos de areia

ATRIZ 1
E faz de conta que cada grão de areia é uma esperança que a gente ainda pode colher

ATRIZ 2
E faz de conta que o amor verdadeiro existe

ATRIZ 1
E faz de conta que ele é possível

ATRIZ 2
Então faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos

ATRIZ 1
Faz de conta que eu amava e que era amada

ATRIZ 2
Faz de conta que quando eu fechasse os olhos seres amados surgissem quando eu abrisse meus olhos úmidos de gratidão

ATRIZ 1
Faz de conta que tudo o que eu tenho não é faz de conta

ATRIZ 2
Faz de conta que chove lá fora e, faz de conta que eu consigo sentir plenamente a alegria e a dor de estar viva

ATRIZ 1
Faz de conta que meu peito se descontraía e uma luz douradíssima e leve me guiava por uma floresta de açudes mudos e tranqüilas mortalidades

ATRIZ 2
Faz de conta que, pelo menos uma vez, a história contada do amor não é o desencontro, mas apenas o medo de viver a beleza que existe


As duas atrizes olham para Homem e Mulher e vê a nova cena sendo configurada, e agora passam a narrá-los.

ATRIZ 2
Faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.

ATRIZ 1
Faz de conta que ele a esperaria com flores por toda a vida. E enquanto ela não viesse, ele trocaria as rosas murchas por frescas até a sua chegada

ATRIZ 2
E faz de conta que, para experimentar uma fração que seja desse amor, ela precisaria atravessar a noite de alma

HOMEM-
Seu amor que agora era impossível – era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E “eu te amo” era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça.

HOMEM

(para Mulher)
Vai doer

MULHER
Eu sei

HOMEM
Você não tem medo?

MULHER
Tenho

HOMEM
Quer mesmo assim?

MULHER
Eu tenho mais medo de outra coisa do que da dor

Mulher emociona-se, como se lembrasse de algo que não queria

HOMEM
Você pode confiar em mim

Homem aproxima-se dela. Ela, imóvel, observa-o, desconfiada. Ele, calmamente, traz uma cadeira para que ela se sente.

ATRIZ 1
Em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que empurrava, e cair.

A mulher senta-se na cadeira. Ele, calmamente, começa a tirar um dos seus sapatos

ATRIZ 2
Ela tinha uma espécie de receio de ir longe demais. Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la Deus sabe onde. Ela se guardava. Por que e para que? Para o que estava ela se poupando? Talvez se contivesse por medo de não saber os limites de uma pessoa

HOMEM
Eu beijaria teus pés, se você quisesse

MULHER
O amor te pede essa submissão?

HOMEM
Você só se submete se vê o mundo com olhos de orgulho. Essa é a minha devoção ao mistério maior.

Homem, calmamente, acaricia os pés dela. Ela, em um calafrio, levanta-se bruscamente, mancando

ATRIZ 1
Deus...se eu quiser escolher finalmente me entregar sem orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do "outro". Que rei sou eu, que não se curva?

MULHER
O amor te pede essa submissão?

HOMEM
Não me curvo a você, mas à vida que mora em você.

MULHER
Eu tenho medo

HOMEM
Eu também tenho

MULHER
Como é que o medo acaba?

Homem vai até a mulher e pega a sua mão

HOMEM
A gente vai apesar dele.

MULHER
Então eu aceito.

Ela senta-se novamente. Como se tivesse perdido uma batalha.

ATRIZ 1
Eu tinha nascido simplesmente e também simplesmente quis ir tomando para mim o que queria. E a cada vez que não podia, a cada vez que era proibido, a cada vez que me negavam, eu sorria e pensava que era um manso sorriso de resignação. Mas era a dor que se mascarava em bondade.

HOMEM
Aceitar não é se resignar. É a coragem de estar vivo.

MULHER
Eu não sei como estar viva.


ATRIZ 2
E ela amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser salvo pela alegria. Porque a mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.

O homem tira uma farpa dos pés da Mulher. Ela grita de dor, o saco com o peixe cai no chão, arrebenta e deixa escapar a água.
A mulher chora, finalmente.

MULHER
Eu só fingi...Eu fingi por orgulho que não doía, eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e era com o mesmo material que eu iria a ele. O mundo se queria comível, sim, mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava, mas mundo só se dá para os simples...


ATRIZ 2
Ah, se você entendesse que a fúria é contra os teus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se transformará nas tuas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor.

A mulher pega o peixe no chão, com carinho. Ergue-se, devagar

HOMEM
Eu te amo

MULHER
O que eu faço com isso?

O homem a abraça.


ATRIZ 1
Quando ela pudesse sentir plenamente o outro estaria salva e pensaria: eis meu ponto de chegada. Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo.

ATRIZ 2
Ela contara por alto que um dia, ao escurecer, começara numa esquina a chorar de manso. Não havia ninguém por perto, e então ela começara a falar sozinha. “Deus, me ajude nessas trevas geladas que são as minhas!”

As duas atrizes começam uma oração, como uma ladainha. Esse texto pode ser intercalado com o da Mulher ou simultâneo a ele

ATRIZ 1
Deus, alivia a minha alma, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade,

ATRIZ 2
Faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária,

ATRIZ 1 e ATRIZ 2
Faze com que eu não Te indague demais,

ATRIZ 1
Porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta,

ATRIZ 2
Faze com que eu me lembre porque também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível

ATRIZ 1
Abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que eu durmo,

ATRIZ 2
Faze com que eu tenha caridade de mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou,

ATRIZ 1
Faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.

MULHER
Cobre minha fúria com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar, minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou uma erva que se sente onipotente e se assusta.
Tira de mim a falsa onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da amante, do filho.

A ladainha se cala.

MULHER
Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento de não amar.

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