domingo, 21 de dezembro de 2008

Pequeno estudo da personalidade tripartida

Ela manda
Ela obedece
Eu anarquia

Elas, algo das partes
Eu, parte de algo (maior)

Ela grita (ainda que pouco)
Ela chora (ainda que raso)
Eu medito (ainda que nada)

Ela,relógio
Ela adia
Eu sintonizo

Ela corta cabeças
Ela evita o confronto
Eu convivo (e converso)

Ela fala
Ela é muda
Eu escuto

Ela tropeça
Ela é cocha
Eu danço

Ela, tragédia
Ela, drama
Eu, comédia

Elas, ainda são
Eu, ainda tento
Ser


Ela, obsessão
Ela, sono
Eu, presença

Ela, trabalho
Ela, a cama
Eu, o mundo

Ela, a tirana
Ela, a traída
Eu, o amor

Ela executa
Ela reclama
Eu crio

Ela, a ama
Ela, a serva,
Eu, o torpor.

Ela esperneia

Ela é areia

Eu, além mar


Ela é fria
Ela, alergia
Eu, coração

Elas persistem
Eu tá no fundo
Tenta sair

Elas existem
Eu tá no mundo
Falta subir

Elas, no topo
Tapam o poço
Mas passa o ar

Elas nem sabem
o Eu já chega
Toma o lugar.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

postagem cifrada: só para ele

Ver o ator que salta do homem-você me leva àquele tempo que te falei naquele dia. O tempo em que não somos só euzes-vocês-das-contas, mas o que?
Outra coisa.
Lendo a magia do momento preciso em que intenção passou a ser história, em que filho passou a ser corpo, em que sonho passou pra matéria, pergunto: é o que?
Não é coisa que evapora, que se esvanece ou que se esquece: se evoca.
Evoca-se como oração: não nos saquem a matéria dos sonhos! não nos deixem sós, rendidos, vazios, sozinhos em dois!
Evoca-se o papel na sagrada união de um tempo sem tempo. Lá, somos. De lá, já nos vimos. Talvez pra lá vamos.
E temos que ir sempre. Um tantinho a mais do que vamos, pra lembrar o que estamos fazendo juntos: muito além de uma casa.

um beijo mineiro. depois, todo o resto.
clau

ar

fora do contexto
co-ti-di-a-no
pergunto como posso não te ver tanto
te vendo tanto todo dia

das entrelinhas

para o amor,
conexão
para ela,
silêncio.
para ele,
ela,
elo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

teorema tostines

reclamo que nunca dá tempo
porque gasto tempo reclamando?

chama luz

ela me persegue.
a sombra do inevitável
roubando a criança dos dias

ela me protege
a brisa da intenção
tornando transmutável o impossível

domingo, 7 de dezembro de 2008

das prioridades

é só agora.
só agora que vou trabalhar uma hora a mais.
só agora o chocolate.
depois, a bicicleta.
só agora a obrigação
depois, a diversão (não é essa a ordem certa?)
só agora o amor fica depois.
só agora divido matéria e espírito.
depois, o espírito
só agora, porque preciso de dinheiro
depois, o riso.
só agora, porque preciso ser aceita.
depois, o caminho.
só agora, porque é urgente.
depois a essência, porque dá tempo (a vida é longa)
só agora percebo: é sempre agora, mesmo depois.
percebo a tempo. Há tempo?
agora, viver o depois.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Tônica 2008

plantei, plantei, plantando, regando, plantando, regando, plantando, esqueci de regar ali, plantando, murchou, regando, levanta, plantando, plantando, plantando, eitagerúndio, plantando, plantando, olha o sol, plantando, olha a chuva, plantando, regando, plantando, cuidando, descanso?, plantando, anarriê, plantando, plantando, (suspiro) e plantando...adubo:esperança.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

novo blog

Eu tô sumida por aqui, apareci acolá.
Entre as coisas que me tiram o tempo e me dão prazer, está a construção da nossa casa.
Pra não ficar monotemática aqui, fizemos um blog exclusivo:

http://obraprospero.blogspot.com/

Se você se interessa pelo passo a passo de uma obra que quer ser linda-barata-descolada-moderna-sustentável, e ainda quer ler as reflexões que fazemos durante este percurso, xereta lá.

daqui a pouco eu volto com outros temas...

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

actualidades

escrever projetos (ah!!!!!!!!!!!!!!!!!!por que a reforma da língua portuguesa não aboliu essa?)
ao som de cocoricó
gritinhos
e mamadas

terça-feira, 21 de outubro de 2008

eterno

sumi, mas nem tanto
eu sempre vou
tranquila no você
porque sei que nunca não voltaria

domingo, 21 de setembro de 2008

quarta-feira, 23 de julho de 2008

oração da noite

às vezes, a gente atravessa algumas noites.
O mundo tá difícil. as relações humanas, então...nossa!
Mais fácil, burocraticamente falando, seria não fazer nada. Ser funcionário, funcionar simplesmente. E tirar férias e fim de semana, como se não tivesse nada com isso.
Mas a alma da gente não sente as coisas assim.
Então é foda, mas o melhor é encarar as coisas.
Não quero ser específica, porque isso cabe, nesse exato momento, em muitas situações. E é difícil não julgar as pessoas, então prefiro calar e pedir humildade, porque orgulho a gente tem de sobra, mesmo que seja atraso de vida. Ah, se a gente vivesse na humildade, entenderia que só o ego se submete. O nosso eu superior pode ser humilde porque entende que humildade não é submissão, é plenitude e alegria.
Mas a gente quer realizar, precisa realizar, viemos para condensar matéria. E como realizar com desapego? Como querer sem querer?
Humildemente peço ajuda para entender esse falso paradoxo. Porque sei que em algum lugar nada disso é incompatível.
Peço ajuda para cruzar as noites sem pressa para ver o sol.
Peço ajuda para cruzar as noites sem escurecer minha vista ao passo do outro.
Peço silêncio para ouvir o melhor a fazer.
Ilumina, meu guia, essa noite, respeitando sua escuridão característica, mas que não é a escuridão dos abismos. Ajuda-me a realizar com passos firmes, na confiança de um destino maior.
Ainda tenho muito a aprender.

domingo, 20 de julho de 2008

era uma casa muito engraçada...

capítulo X da vida: a Própria Casa Própria
a gente zoa com isso, faz piada, mas uma coisa é verdade. Aliás, duas:
1) Todo mundo merece ter seu canto
2) Ninguém merece pagar aluguel.
Movidos por essas certezas, procuramos há mais de um ano.
Em São Paulo é assim: tem que conseguir uma combinação mais que perfeita entre tamanho, localização, transporte, horas de trânsito, coeficiente de barulho e poluição e quartos em que se pode, ao menos, dormir na horizontal. Porque vamos combinar que nem no Japão deve ter quartos dos tamanhos que andam vendendo...
Agora somos vítimas das incorporadoras. Os prédios tipinho neoclássico que têm derrubado as casas de todas as vovós do bairro aumentaram o metro quadrado a preço de solo sagrado, e uma casinha capenga tá valendo ouro por aqui.
Mas eu insisti, vazendo valer os chifres da teimosia taurina, e achei, aqui perto, ainda numa ilha longe do som das britadeiras (ou talvez eu já esteja surda demais pra ouvir, porque nem tão longe é)
casa véia, muita reforma, mas de repente rola.
fizemos uma proposta estilo truco, bem menos do que pediam, bem mais do que temos, e talvez mais do que vale, se não fosse a especulação. Trucamos semana passada, a corretora pediu seis, a gente pediu nove e estamos até agora suspensos no ar. O Dja é um ótimo jogador (ele gosta da coisa), mas eu que gosto da casa tô roendo até canto de unha.
amanhã a mulher disse que liga com a resposta. Nessas horas só na fé.
a gente tem visto apartamentos também, mas não dá pra fazer fogueira, plantar árvore e criar cachorro.
e até amanhã, minha barriga = tobogã

na gira...

muita coisa pra falar, mas o sono também é muito e eu estou finalizando um video que vai passar amanhã no Cinesesc, uma invenção do Heron. Porque o Heron não pára nem com tumor. É engraçado, porque ele sempre me falou da Ana Carolina, a cineasta, que eu só tinha uma vaga lembrança de uns filmes vistos na ECA, e agora cá estou revendo as coisas dela pra fazer essa colagem, e sabe, ela é bem louca!
sobre a Gira, é tanta coisa já, o frio na barriga é tanto que não é hoje que eu vou escrever. Só digo uma coisa, tá rolando...e faz parte de todos os sonhos que estão se condensando na matéria palpável, e olha que estamos ainda em julho, e muita água vai passar por debaixo da ponte. Todo meu ser está voltado para essa palavra: concretude. E as palavras da Gira vão assumindo corpo e voz, para minha alegria.

agradeço, agradeço e é só.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

um ano de pedro



um ano de Pedro do lado de fora

um ano de vida fazendo memória

um ano de um dia que vale uma vida

chegada que nasce de uma partida

partida de si, parto, dor, desmedida

e alma que chega, do amor, acolhida

transforma a moça, já não mais donzela

trazendo o presente, depois de uma espera,

de ser-se bem mais do que se imaginava

ser mãe ser entrega paz luz porto estrada

nascer-se de si junto ao filho querido

virar, há um ano, o desconhecido.

obrigada, alma-luz, por essa história.

muitos anos de linda vida.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

revelação da revolução

nada mais revolucionário
do que o tesão de estar vivo

segunda-feira, 5 de maio de 2008

tete, tete e tete - a tríade

tetê sou eu, a mãe
tetê também é mamar
tetê também é como ele se chama
tetê é a unidade
que depois a gente fragmenta
e passa a vida catando pedaços

sexta-feira, 2 de maio de 2008

My Blueberry Nights


que delícia de filme!
cinema, cinema, cinema
imagens sem pressa
planos loooooooongos...liiiiiiiiindos...
texto na medida
nem ingênuo, nem cético,
coisa boa de ver em dia de frio e chuva.

terça-feira, 29 de abril de 2008

era ela, o abismo



lá estava ela, e o abismo
um texto que ainda vou escrever. estou com uma certa saudade de um delírio, a vida de repente aterrou demais.
são momentos e momentos. mas dá saudades de dioniso
essa foto foi tirada há mais de dez anos, numa expedição com um grupo de atores e de fotógrafos. Foi animada pelo renatinho chaui, um espírito lindo que hoje é só espírito.
um dia, foi ele e o abismo. e o abismo ganhou a batalha.
pra ele, naquela época, escrevi um texto. hoje, não sei por que, veio à tona:
Voa, meu amigo, voa
Ao encontro da sua paz (?) aqui nunca conquistada
Voa, meu amigo, voa,
Voa dentro de mim com o olhar edificante com que você enquadrava o mundo, e sua sede de vida nunca saciada
(talvez por procurar se adequar ao inadequável)

Não quero romantizar seu salto. Nem tentar entender suas razões, ou a falta delas.
Só espero, como um último desejo,
que sua alma tenha se refeito em algum ponto do infinito para onde você mirava.

E sua imagem voando será a minha herança
Tão fiel como sua amizade
E sua imagem no ar será a minha certeza
De que esse mundo ainda não é feito para os humanos

E sempre que eu estiver prestes a sentar no conforto e acreditar no que me vendem
Seu vôo me fará levantar, seguir em frente e mudar alguma coisa.

proibidus


a gente disse pro Pedro que ele não pode pegar o telefone sem fio daqui de casa (ele deixa ligado, baba, joga no chão...não, né?)
lógico que o telefone virou um obscuro objeto de desejo.
um prazer incontrolável que só perde a força se a gente deixa mexer.

agora ele tá com o telefone falando na sua nova linguagem élfica ou ewok. algo como butibutiguti

eu queria fotografar, mas a câmera quebrou. virou "não pode". claro, aí que me deu uma vontade imensa de fotografar, filmar, ligar a câmera, porque ficou proibido.

aí, podendo pegar o telefone, o telefone perdeu a graça e ele quis pegar o inalcançável: o teclado do meu computador. lkmnçlkjn~ljk~kjõklj

segunda-feira, 21 de abril de 2008

cinema puro


sabe que o truffaut tá me dando vontade de voltar a fazer cinema?

polianice

a única coisa boa de demorar a viabilizar um projeto é que, enquanto não sai, eu vou aperfeiçoando.
NA GIRA RETA DO DELÍRIO, por exemplo. Descobri recentemente que a personagem que inspirou a peça simplesmente está equivocada.
lá vamos nós, reescrevendo.
a gente muda, elas mudam com a gente. as personas.
bora aí, mudando, minha filha! o futuro é grande, mas uma hora ele encurta! terra gira devagar pra não dar tontura, mas parar no tempo dá vertigem de retrocesso.
já tô falando demais...

identidade

eu 7kg mais magra. Hoje era segunda, mas como era feriado, comi strogonof. mas vou fazer kung fu, de repente agora vai.
estava adorando as aulas de danças brasileiras do Cris Meirelles, mas ele quebrou o mindinho do pé, é mole? um mindinho cambeia a gente toda!
eu sem óculos, mas fazer o que, não dá pra ficar sem nem usar lente. então agora assumi de vez, botei óculos daqueles de aro grosso. meio 60. meio estilozinho. meio máscara do zorro, pra falar a verdade.
eu de cabelo arrumadinho, mas disso já desencanei faz tempo. não quero fazer relaxamento e coisas do gênero, tenho medo de câncer no cérebro e da estética chapinha. pelo menos o cabelo zoado é estilo da família, eu, dja, pedro. o dele tem cachinhos.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

liberdade liberdade


espíritos livres são assim
as grades
são mais um motivo
para ficar de pé
e sair andando

sábado, 5 de abril de 2008

sobre a natureza do público

certa vez, vendo o documentário "à margem da imagem", sobre moradores de rua, um personagem me revelou a essência do pensamento acerca do público. ele havia construído sua morada debaixo do viaduto do Sumaré e, segundo o próprio, escolhera o lugar porque "sendo público, não era de ninguém".

não é ótimo?

desse pensamento, derivam outros:

"o público é o que ainda não é de alguém. Se ainda não é, é porque ninguém ainda comprou. Se ninguém comprou, ainda está à venda. Se está à venda, eu posso comprar. Se eu comprar, então não é mais público. É meu."

o cara do filme, como não tinha poder de compra, teve que desocupar o público. Mas ele não sabia que o público era, na verdade, de todos, portanto, também dele, então teve que obedecer.

os caras de grana, como têm poder econômico, têm o poder, também, de transformar público em privado. primeiro, foram as terras. Agora, ar e água. Com o fogo só não mexeram ainda porque vão ter que acertar as contas com Prometeu. Na justiça dos humanos já está tudo certo.

crise choque pilha

crise tem sido moda. pra mim, nunca foi. acho um saco, porque tudo pára. ou antes parasse, tudo dá voltas, tudo dá náuseas, eu, correndo atrás do rabo. é claro que vem para bem, a gente cresce e etc, mas até que chegue...são voltas e voltas...
nessa semana assumi uma crise. crisezinha, mas ei-la aí, inevitável, dando sono nas horas erradas e tirando o sono nas madrugadas.
mas dessa vez, ela veio com um rosto. um rosto gordo e escroto. que ria e urinava em mim, enquanto eu, com a boa vontade de uma boa alma, fazia o que ele pedia.
foi um sonho. a figura escrota (antes, não assim revelada) me pedia para que eu pegasse um par de pilhas num poste - assim são os sonhos, não me peça explicações. botei a mão no poste, levei um choque desses de prender os dedos, o cara ria e mijava na minha cara. muito humilhante. por alguma razão desconhecida, o pedro chorou bem nessa hora, como um anjo me tirando de perto daquele traste no meio da madrugada para sua mamadinha de sempre...e deixando claro o confronto com essa energia indesejável.
o cara gordo e escroto?
não. esse é só mais um daqueles personagens internos. a energia indesejável é aquela que me faz virar uma ameba, ficar suscetível, perder meu chão.
por que, ô caralho, eu não faço logo o mero fazer? o que vim pra fazer? por que, ó por que, uma multidão de palavras inúteis invadem minha cabeça me tirando o sossego, atisicando a certeza, a clareza, a coragem, a confiança? a claudia, sei lá. hoje está estranho até dizer meu nome, como se não fosse eu.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

tempo pedro tempo


cuido-te, filho
até que andes pelos teus pés
enquanto guardo e aguardo,
teu sorriso me empresta a lembrança do meu.
tua inocência me lava
e me devolve a minha.
tua confiança na bondade do mundo
me traz de volta a coragem:
braços abertos para o desconhecido e o incerto,
cambaleando ou não, sempre em frente,
tesão de viver.

sábado, 22 de março de 2008

sobre o amigo Antônio Mercado


Hoje me lembrei de um grande amigo e mestre: Antônio Mercado.

Ele cruzou minha vida (ou eu a dele) num momento bem decisivo, há 10 anos atrás. Na época, eu era estudante de cinema na USP, e havia recém-descoberto que o mundo não se restringia à sala de produção da ECA. Militava ardorosamente no Movimento Humanista (onde estou até hoje) e passei a questionar, entre tudo o que fazia, o papel da arte e do artista.

Até que resolvi “filar” sua aula, direção de atores. Esse era somente o título da matéria, porque o conteúdo era algo muito maior. A cada manhã, eu saía plena, sempre com a sensação de ter roçado em algo que sempre procurei, porque não só a carga de informações que ele generosamente nos transmitia era muito consistente, mas também sua humanidade. Era a primeira vez, por exemplo, numa escola de artes, que alguém falava sobre posicionamento artístico, do que buscamos com o que fazemos. E nada parecido com os modelos “mestre Yoda”, pelo contrário. Ele não fazia força para ser referência, no entanto, lá estávamos nós, sempre uns cinco ou seis da turma, segurando-o na conversa até uma hora além do término da aula.

Eu tinha um privilégio: Ainda dava carona, e podia contemplar mais uma hora de diálogos exclusivos...

Juro que não é tietagem. Quem o conheceu, sabe desse poder que ele tem de abrir dentro da gente um lugar especial. E isso não acontecia somente pelo que ele dizia, pelas histórias que contava (entre elas, seus tempos como advogado criminalista quando, junto a outros como ele, libertou vários presos políticos na época da ditadura militar). Havia uma aura em que se podia intuir tudo o que ainda não tinha sido dito. Porque ele foi uma pessoa que se lançou à excelência do seu trabalho, não teve receio de ir além dos limites, e isso transparecia. Ele nunca disse, mas eu sempre soube.

Na época, antes de conhecê-lo, eu quase desisti de tudo. Estava frustrada com as brigas dentro do curso, com a pouca profundidade do que eu fazia, e comecei a crer que o mundo precisava de coisas mais urgentes. Comecei a questionar o que eu estava fazendo com minha vida, e tudo me parecia uma grande egotrip.

Ao mesmo tempo, aquelas manhãs sempre me deixavam um gosto de uma estranha alegria, como um afago na alma. Como se meu carrasco interno tirasse um cochilo na presença do Mercado. Como se eu vislumbrasse que sim, eu poderia fazer algo pelo mundo escrevendo, criando. E que esse meu "compromisso com o mundo" que se contrapunha à vida artística era um puta medo de errar e ser plenamente o que eu era. Que sim, eu poderia assumir minha vocação sem culpa. Porque vocação, quando é verdadeira, é uma correnteza que te busca onde você estiver e te arrasta sempre. Lutar contra isso era terrível.

O Mercado também me ensinou (sem falar) que estar no mundo, dentro das estruturas, não necessariamente é se vender. O Mercado me fez ver que o “mercado” é mais um campo a ser transformado, se você não acredita nele. Ele contou da sua experiência na Rede Globo, imagine...Dele e de tantos outros que usaram o veículo com fins revolucionários, que tiveram estômago e fígado para isso.

O Mercado, então, foi implacável: me desnudou de todas as minhas desculpas.


Sem dizer nada, sua simples existência em minha vida me fez vislumbrar um possível destino em que eu realizava plenamente o que vim fazer: CREAR. Gerar vida a partir do nada.

Hoje, ele está lá em Portugal. Já faz um tempo grande que ele cruzou o mar levando com ele a vontade de realizar que pulsava sempre. Já faz um tempo que não nos falamos, pode até ser que agora ele seja um jogador de pôquer famoso, um dionisíaco dono de reustaurante à beira-mar, um artesão de sapatos, aparador de bigodes, mas ainda aposto que ele segue pisando firme nos palcos. E eu, depois de ter gerado um filho e algumas peças, sempre me surpreendo, às vezes como um assalto, com a sua presença em minha memória. Talvez ele já tenha se convertido, dentro de mim, em um guia. Porque aquelas manhãs na ECA deixaram um cheiro estranho, que é um forte antídoto aos momentos de desânimo, aos momentos quando novamente cedo à pressão do carrasco e deixo de realizar o meu destino.


Um cheiro de permissão para ser. Integralmente, ser-se. E viver o que se é.

Caro amigo, te serei eternamente grata. À sua existência no mundo e à sua permanência nas minhas lembranças de todos os dias.

quarta-feira, 19 de março de 2008

puta que eu me pari

preciso revisitar esse momento da minha vida...

sexta-feira, 14 de março de 2008

alegrias

adoro encontros inesperados em lugares inesperados em dias inesperados, momentos inesperados. tem gosto de festa preparada pelo destino.
pra isso, basta sair de casa.

quinta-feira, 13 de março de 2008

quando grávida (dez luas)

O que isso tem a ver com todo o resto da matéria viva?
Tudo.
Mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que o medo era maior. Não me pergunte do que, porque quando se tem medo nem se sabe, é só um ar dilatado impedindo o ar de verdade. Teme-se tudo, porque no fundo a gente se sabe mudança constante. E o medo cria uma ilusão de pintura na parede. Sem perspectiva, cor ou forma. O medo cria as ameaças, o poder estabelecido, a fuga de si, a necessidade de quem manda (pra onde?). O medo é o capacho do desejo de permanecer. O medo tem nomes toscos e imperativos que mudam ao longo da história (Nero? Bush? Quantos...), mas também tem marcas individuais criando esses pequenos nomes dentro de cada vivo. Nos vivos que se sabem vivos, os humanos, ele cria história regressa.
O oposto do medo é a coragem. Coragem, coração, peito aberto que pulsa e marca o ritmo do movimento, que nunca é quadro parado. Nada mais lindo e temível (para os que têm medo) que um coração pulsando. Talvez daí venha o medo das bombas de onde nascem as guerras, porque o coração é bomba de onde nascem luzes.
Mas antes da visão do coração pulsando, o saber-se recheada de vida. Não só o impulso vital de todos os dias, mas uma vida alheia, alma outra que quis vir nessa Terra-universo-espaço-tempo por meu intermédio. E antes da cena do coração pulsando no ultrassom, um banho infinito, talvez o maior da minha vida, o banho após a notícia de se saber agora outra, agora grávida, me disse mais do que a imagem cinza e enigmática do ultrassom. E uma voz doce desceu de algum lugar de onde vozes doces vivem e, no meu coração acelerado e feliz e de repente perdido e sem acreditar, encheu de matéria fé um corpo que jamais seria o mesmo, um espírito que, já em construção (o meu), jamais será o mesmo. A voz cantou um canto sem palavras prenunciando o retiro dos próximos nove meses. O que a voz cantou eu entendi a prestações, mês a mês, ao perceber que gravidez não é só espera, são encontros.
O começo é a novidade com terremoto do corpo. Tudo se reajusta, provando que sempre há espaço pro que se deve nascer na gente. As vísceras vão cedendo espaço, mas como são melindrosas (porque nós as carregamos desses sentimentos não resolvidos), dão gritinhos mal-humorados. Mas nessas horas a gente, com dois corações pulsando, acha coragem em dobro. Essa coragem escorre até os dedos dos pés, que se liquidificam e escorrem pela terra, por mais que se use sapatos. Vira um líquido que, em contato com a terra, por mais que se pise em cimento, assume formato raiz. E todos os cantos internos de todos os cantos não revelados sobem por ela como seiva, numa ação contrária à gravidade, alimentando o espírito. Esses cantos são os hinos entoados mês a mês, e apenas ouvidos se a coragem tiver silenciado o medo do novo. A gente cala o cotidiano, cala as conversas inúteis, acho que até o ouvido deve crescer um pouco, de tanto que talvez se escuta. Digo talvez porque não é óbvio, é tão sutil que escapa ao menor retrocesso à vida anterior. Mas os dois corações ajudam. Às vezes a gente até solta um rugido que escapa de alguma herança perdida, lembrando que só somos gente por ser de outra espécie e por escolha, mas que o impulso está lá, para quando se quiser tomar contato. Então é o canto da terra com o tambor duplicado no peito o que, durante esse tempo nos coloca em estado de graça, e também nos desestabiliza, enquanto nosso corpo vai se tornando lua. E os contatos também ficam sutis, com a alma de quem vem, com a alma do pai que assiste à revolução em tempo lunar mudando também o seu calendário. E assim como a terra muda as marés com a lua, o pai deixa-se tomar (caso queira também cair na correnteza da vida) por essas ondas gigantes, vivendo uma trindade ainda secreta entre dois mundos.
De tudo, só é necessário querer o que é vivo e humano. Em si e nos outros.
São três momentos. Gestação, parto, maternidade. Cada um com canto próprio. Agora o que experimento é o final do primeiro ato. As últimas notas, as últimas viradas da lua.
Não é um mês. São semanas
Não, não são semanas. São dias. Dias não!
Horas...
(Oras)
Horas perdem os contornos. Nada mais se conta em unidades de tempo.
....
É um longo tempo...
Talvez não pela ansiedade ou pela demora...mas por, talvez, se esperar que a cada momento a vida irrompa a realidade cotidiana, e é preciso estar atento, é preciso estar desperta, preparada, em prontidão de pássaro antes do tiro, vive-se o último mês como se deveria viver sempre, atenta e grata pela morte iminente, pelo nascimento iminente, pela vida, o presente, enfim.

a minha casa tem goteira

antes, pingava ni mim
em cima do meu travesseiro
remendamos o telhado umas 1500 vezes. O cara que arruma disse que não tem mais jeito.
agora, quando chove, só chove (e chove meeeesmo) no banheiro.
devo agradecer porque é no banheiro, piso frio?
espero, conformada, pela estiagem? Mesmo que o ar de SP fique horrível?

quarta-feira, 12 de março de 2008

vitórias ecohumanistas do dia

1.manifestação no IBAMA hoje não teve violência policial
2.conseguiram que haja uma audiência pública com os municípios atingidos por barragens antes de inundarem tudo com a porcaria da usina
Agora só falta o Sr.Antônio Ermínio deixar de lado o capricho, deixar a miopia, deixar essa gente em paz, meu Deus, que todo mundo tem mais o que fazer da vida! E ele não tem? Quem precisa de alumínio, lata de Cola Cola?
para saber mais: http://www.terrasimbarragemnao.blogspot.com/
e tenho dito!

quarta-feira, 5 de março de 2008

palavras-bebê

Hoje o Pedro falou água. E mostrou a língua.
Eu sou a tetê. às vezes, a mamamamamama. Pra mim é aleatório, pra ele deve ter sentido uma ou outra.
o Dja é o papapapapapapa
já tem também uo(v)uô e uo(v)uó
e andar: adiá
a campeã: taita. Essa eu nunca entendi, que burra!


gracinha musical

Sabe que o incrível é que às vezes, a gente parece que...não sei... A gente parece que..., sabe, a gente não sabe de nada...

aceitação

Ser do rodapé. Ser da ralé. Ser do foda-se, do foda-me, do cais. Ser mais.
Ser da falta. Ser da não precisar. Será? A liberdade dos que parecem livres, do que padecem livres, mas que afrouxaram o passo por falta de RG.

Ser a banda que ressoa no coreto da cidade para ver os velhos dançarem sem importar o cachê. Ser a mola do realejo ao entregar o bilhete certo a quem ansiava boa sorte. Ser a valsa na noite de lua. ser o acalanto da lua após uma dor desconsolada, ser a voz do desespero que alivia o risco do suicídio. ser a luz na névoa fria. feito brisa. que torna-se tormenta;

Ser a volta da fortuna na vida. ser a permissão pra sorrir, ser a planta da casa, renovar o H2O esquecido, ser o porto dos amores esquecidos Ser. Não importa quando, nem onde, mas fazer orbitar os elétrons ao redor dos núcleos, pelo simples motivo de manter a vida em movimento.

Recriar não a vida, nas a razão dela. e deitar-se na íntima certeza de ter nascido para fluir seiva fresca ao mundo, seja ele qual te deram.

Ode ao câncer contemporâneo

Ela vende.
Ela mostra
ela tem que agradar.
Ela carrega a alegria do sonho realizado
ela espanta tristezas
abomina tristezas
tem que ser digerível

Ela evita o confronto
Mas não se esquiva do confronto com o outro
que possa lhe roubar a posição

Ela evita a dúvida
a dívida
o fracasso
auto-suficiente, auto-centrada, autonomatizada.

Ela sorri para todos
Ela é linda
ela não erra
Ela tem que vender
Ela não silencia
Ela não descansa
ela fala, fala
mas não troca

Ela patina na solidão de si mesma
para ela, silencio é anonimato
e anonimato é morte certa
vida é fama
ser de todos, menos de si.

os outros são apenas aplausos
palcos
degraus
amigos a favor do pêlo
amigos-platéia-aplausos

Silêncio

Silêncio

Silêncio

De repente, uma fratura
vazou um silêncio
vazou outra possibilidade
vazou o desespero de novos caminhos

o desespero da libertação

vazou um outro pensamento
vazou um desejo até então estranho
de não ser ninguém
além da vontade daquele momento

Vazou um desejo de implodir estruturas
de jogar para o alto o pódium de tantos espetáculos
de tantas vitórias

Vazou, e logo foi tapado
com um novo show
que nunca mais foi o mesmo

a partir daquele dia,
a felicidade gerava dúvidas
o espetáculo gerava dívidas

anos de dívidas de alma.

O Maquinócio do sofá

O Maquinócio das poeirinhas
o maquinócio das impossibilidades,
das faltas de fé e sonho próprio.
Comodidade entorpecente
o maquinócio da gordura aspirada by ginástica passiva

remaremaremaremaremaremaremaremaremaremaremaremaremaremarmmmmmmmmm
mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
mmmm

Rá! Curto-circuito no cortador de grama!
agora o mato vai crescer e criar animais no jardim

borboletas selvagens vão invadir a sua janela, sua casa, paredes, fechaduras, seus controles remotos, seus descontroles disfarçados de apertos de mão insossos e suados, seus peidos retidos na imensidão do banheiro solitário, seus surdos prazeres abafados na vaga possibilidade do castigo, sua lágrima cristalizada, feita pedra, feita ácido.

Maquinócio a baixo custo
em suaves prestações
diárias
Suavize a sua rotina!
Suavize a solidão!
moto boy de nike e rodas
Mande andar até você!
Mande!

remaremaremaremaremaremaremaremaremaremaatchim!!!!!!!!!!

O corpo espirra, o corpo chama, a chama chama, você reclama.

Concepções da vida após conceber uma vida

A vida é boa
A vida muda
A vida não tem hora marcada
A vida não espera pela perda do medo
A vida exige
A vida dá

A vida sangra
A vida, sagrada.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

quinta gira com Clarice

Engraçado, não é? Parece que foi ontem, você nasceu...não sabia de nada, não controlava nem seu corpo...viver não é brincadeira, em pleno dia se morre, em pleno dia se nasce. E você nasceu com esse olhar de estrela, de espécie diferente, com jeito de quem iria à lua num piscar de olhos. E foi. É quase um milagre olhar para você. A gente, vivendo, se esquece do sobrenatural que é estar vivo, de ser feito dessa matéria animada pelo invisível. Até ontem, você nem falava. Era só um olhar para o mundo, e foi nesse olhar inocente eu aprendi o que era o amor, o que era se dar a alguém. E como eu quis fazer de você uma rosa sem estufa, sujeito às intempéries, só te dei espinhos para ver se você os usaria. Os espinhos são o detalhe, sua alma é seu perfume. É aí que mora a sua essência, mesmo que encharcada de chuva.
Eu confio em você. Porque naquele dia em que te vi chegar, aquele seu olhar de quem veio sem saber por que encheu meu coração de ternura. E eu me compadeci desse seu desalento, dessa solidão de estar aqui, e só pude dar a você o meu abraço. E meu calor.

quarta gira com Clarice

Carta ao amigo

Peguei seu recado às duas horas da manhã de ontem, e tenho medo de saber o que nessas horas mudou no mundo. Será que você ainda está sendo?
A vida não estava fácil para você ? Não parecia...A gente constrói castelos na areia e se apaixona por eles, fica até menor para caber lá dentro, e se esquece de levantar a cabeça e olhar a linha azul entre mar e terra onde moram as curvas. E esquece de olhar para cima e ler nas estrelas a forma dos caminhos que se cruzam. É uma teia invisível para se ver com os olhos de hoje, olhos avulsos, é o único jeito de ver o futuro e respirar de novo.
Desculpe minha ausência no momento do seu silêncio, eu pensava que você queria o vazio. Pensava ouvir você dizendo: “Não precise de mim, por favor!" Mas era você quem precisava...
É duro escrever sem saber se essa carta chegará a você. Estou sem coragem para saber. Queria te dizer o quanto você é perigoso...você me dá impulsos de viver, porque você sempre me livrou da culpa de estar viva. É perigoso o que a gente pode fazer nesse estado de poder ser...
Estou sem coragem de ligar para você, com medo de que...mas se for esse o caso, se você cumpriu sua promessa desesperada da madrugada de ontem, perdoe eu ter sobrevivido. Estou muito cansada...

terceira gira com Clarice

AS ESTRELAS, A AREIA, AS VISCERAS E O MAR

Duas atrizes, deitadas numa cadeira de cabeça para baixo, cabeça voltada para a platéia, como se olhasse um céu estrelado.

Ao fundo, Homem e Mulher


ATRIZ 1
Estrelas morrem, né? Acabam!

ATRIZ 2
Elas já estão mortas, na verdade. Algumas.

ATRIZ 1
Mas se a gente vê, não estão vivas?

ATRIZ 2
Lá onde elas estavam, já morreram. É a luz que chegou aqui.

ATRIZ 1
Tem gente que pede coisas pras estrelas

ATRIZ 2
Pede pra quem? Pra Deus?

ATRIZ 1
Pra estrela mesmo...Acho que se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa parecida com uma estrela tremula dentro da gente.

ATRIZ 2
Então o pedido é pra gente...

ATRIZ 1
A gente pede por aqui (aponta para o coração), no momento em que o ar enche o peito.

ATRIZ 2
Como é que se pede? E o que se pede? Pede-se vida?

ATRIZ 1
Pede-se vida.

ATRIZ 2
Mas já não se está tendo vida?

ATRIZ 1
Existe uma mais real.

ATRIZ 2
E essa aqui é o que então? Faz de conta?

ATRIZ 1
Mais ou menos isso.

ATRIZ 2
Mas se é faz de conta a gente pode ser o que quiser

ATRIZ 1
Essa vida que a gente é o que é não é faz de conta, essa é a real

ATRIZ 2
Então por que não é todo mundo que vive?

ATRIZ 1
Porque é tão livre que aterroriza

ATRIZ 2
Você é livre?

ATRIZ 1
Eu faço de conta que sou.

ATRIZ 2
Ah...

Atriz 1 levanta se primeiro, antes do termino do movimento seguinte, atriz dois levanta depois, atriz 1 começa espalhar areia pelo espaço, atriz 2 entra no jogo e a acompanha. Aos poucos, vai se configurando uma espécie de praia.

ATRIZ 2
Então faz de conta que as estrelas do céu caíram na terra como grãos de areia

ATRIZ 1
E faz de conta que cada grão de areia é uma esperança que a gente ainda pode colher

ATRIZ 2
E faz de conta que o amor verdadeiro existe

ATRIZ 1
E faz de conta que ele é possível

ATRIZ 2
Então faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos

ATRIZ 1
Faz de conta que eu amava e que era amada

ATRIZ 2
Faz de conta que quando eu fechasse os olhos seres amados surgissem quando eu abrisse meus olhos úmidos de gratidão

ATRIZ 1
Faz de conta que tudo o que eu tenho não é faz de conta

ATRIZ 2
Faz de conta que chove lá fora e, faz de conta que eu consigo sentir plenamente a alegria e a dor de estar viva

ATRIZ 1
Faz de conta que meu peito se descontraía e uma luz douradíssima e leve me guiava por uma floresta de açudes mudos e tranqüilas mortalidades

ATRIZ 2
Faz de conta que, pelo menos uma vez, a história contada do amor não é o desencontro, mas apenas o medo de viver a beleza que existe


As duas atrizes olham para Homem e Mulher e vê a nova cena sendo configurada, e agora passam a narrá-los.

ATRIZ 2
Faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.

ATRIZ 1
Faz de conta que ele a esperaria com flores por toda a vida. E enquanto ela não viesse, ele trocaria as rosas murchas por frescas até a sua chegada

ATRIZ 2
E faz de conta que, para experimentar uma fração que seja desse amor, ela precisaria atravessar a noite de alma

HOMEM-
Seu amor que agora era impossível – era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E “eu te amo” era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça.

HOMEM

(para Mulher)
Vai doer

MULHER
Eu sei

HOMEM
Você não tem medo?

MULHER
Tenho

HOMEM
Quer mesmo assim?

MULHER
Eu tenho mais medo de outra coisa do que da dor

Mulher emociona-se, como se lembrasse de algo que não queria

HOMEM
Você pode confiar em mim

Homem aproxima-se dela. Ela, imóvel, observa-o, desconfiada. Ele, calmamente, traz uma cadeira para que ela se sente.

ATRIZ 1
Em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que empurrava, e cair.

A mulher senta-se na cadeira. Ele, calmamente, começa a tirar um dos seus sapatos

ATRIZ 2
Ela tinha uma espécie de receio de ir longe demais. Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la Deus sabe onde. Ela se guardava. Por que e para que? Para o que estava ela se poupando? Talvez se contivesse por medo de não saber os limites de uma pessoa

HOMEM
Eu beijaria teus pés, se você quisesse

MULHER
O amor te pede essa submissão?

HOMEM
Você só se submete se vê o mundo com olhos de orgulho. Essa é a minha devoção ao mistério maior.

Homem, calmamente, acaricia os pés dela. Ela, em um calafrio, levanta-se bruscamente, mancando

ATRIZ 1
Deus...se eu quiser escolher finalmente me entregar sem orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do "outro". Que rei sou eu, que não se curva?

MULHER
O amor te pede essa submissão?

HOMEM
Não me curvo a você, mas à vida que mora em você.

MULHER
Eu tenho medo

HOMEM
Eu também tenho

MULHER
Como é que o medo acaba?

Homem vai até a mulher e pega a sua mão

HOMEM
A gente vai apesar dele.

MULHER
Então eu aceito.

Ela senta-se novamente. Como se tivesse perdido uma batalha.

ATRIZ 1
Eu tinha nascido simplesmente e também simplesmente quis ir tomando para mim o que queria. E a cada vez que não podia, a cada vez que era proibido, a cada vez que me negavam, eu sorria e pensava que era um manso sorriso de resignação. Mas era a dor que se mascarava em bondade.

HOMEM
Aceitar não é se resignar. É a coragem de estar vivo.

MULHER
Eu não sei como estar viva.


ATRIZ 2
E ela amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser salvo pela alegria. Porque a mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.

O homem tira uma farpa dos pés da Mulher. Ela grita de dor, o saco com o peixe cai no chão, arrebenta e deixa escapar a água.
A mulher chora, finalmente.

MULHER
Eu só fingi...Eu fingi por orgulho que não doía, eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e era com o mesmo material que eu iria a ele. O mundo se queria comível, sim, mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava, mas mundo só se dá para os simples...


ATRIZ 2
Ah, se você entendesse que a fúria é contra os teus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se transformará nas tuas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor.

A mulher pega o peixe no chão, com carinho. Ergue-se, devagar

HOMEM
Eu te amo

MULHER
O que eu faço com isso?

O homem a abraça.


ATRIZ 1
Quando ela pudesse sentir plenamente o outro estaria salva e pensaria: eis meu ponto de chegada. Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo.

ATRIZ 2
Ela contara por alto que um dia, ao escurecer, começara numa esquina a chorar de manso. Não havia ninguém por perto, e então ela começara a falar sozinha. “Deus, me ajude nessas trevas geladas que são as minhas!”

As duas atrizes começam uma oração, como uma ladainha. Esse texto pode ser intercalado com o da Mulher ou simultâneo a ele

ATRIZ 1
Deus, alivia a minha alma, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade,

ATRIZ 2
Faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária,

ATRIZ 1 e ATRIZ 2
Faze com que eu não Te indague demais,

ATRIZ 1
Porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta,

ATRIZ 2
Faze com que eu me lembre porque também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível

ATRIZ 1
Abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que eu durmo,

ATRIZ 2
Faze com que eu tenha caridade de mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou,

ATRIZ 1
Faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.

MULHER
Cobre minha fúria com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar, minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou uma erva que se sente onipotente e se assusta.
Tira de mim a falsa onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da amante, do filho.

A ladainha se cala.

MULHER
Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento de não amar.

segunda gira com Clarice

RELATO COM O MENDIGO

Mulher I
Vou contar pra vocês um segredo, vocês são as únicas pessoas que saberão dessa história. Eu não saio contando coisas assim por aí, entende?

Era um dia comum, e meu lar era longe de casa. Na verdade, eu estava sem o endereço de mim mesma. Bússola na mão apontava pro norte, mas eu não sabia o que o norte dizia. A agulha rodava em torno do eixo, e eu, sem eixo, girava de pergunta em pergunta.
Trabalho? Ofício? Religião? Qual é o lugar no mundo reservado a quem não crê naturalmente mas quer, para não morrer em vida, acreditar sem ingenuidade?
Nunca me veio resposta...

Ah, sim...o segredo que eu ia contar....

Todos os dias, no caminho do meu quase lar, eu via um mendigo... um mendigo que tocava gaita... Nesse dia, eu estava muito amargurada, mais perturbada que qualquer outra coisa, e no meio do trajeto, vi novamente aquele homem - o mendigo que tocava gaita - como fazia sempre, gente, todos os dias! E riu para mim. Então eu ri para ele. Não sei o que me aconteceu, fui tomada por uma legião de sentimentos inoportunos que não saberia bem descrever, que não sei bem o que era no momento, comecei a me movimentar junto dele, dançamos sem parar... ele tocava a gaita e dançava, eu dançava com ele... Dancei descompassada, eu e o mendigo, como se algo me tomasse pelo meio, como se um vulcão de respostas estivessem próximas a mim, dancei ao vento, apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia inteiro como o corpo de quem ri, aquela sensação de morte a gargalhadas. Eu e ele, dançado, aquilo durou cerca de uns quinze, vinte minutos, tão depressa como o tempo da dança, comecei a andar, ainda meio tonta, mais depressa, agora sem pudor, tentando recolher, do meio fio, os andaimes da minha vida, parecia que eu tinha encontrado um súbito destino. Aí eu ria, e chorava.

De que rimos nós? Do nosso encontro que era de alegria. Não perguntei o nome dele, porque esqueci que mendigo tem nome, porque esqueci o nome de todas as coisas. Saí dali tomada por um desespero, mudei meu rumo, fui ter com uma amiga, a única que eu achava que podia me entender. Quando cheguei na casa dela, não contei o que tinha me acontecido.

Vocês entendem por que? Ela não entenderia! Ninguém entenderia! Seria folclórico! Exótico! Eu não queria que o asfalto ficasse cinza de novo, porque naquele dia ele era de diamantes...E eu, que não acredito em milagres e achava que tinha vivenciado um, tinha medo de ver meu ceticismo espelhado no outro no exato momento em que eu contasse essa história...

(Coloca as mãos na boca, assustada com a idéia da perda do sagrado. Faz como se tirasse algo de dentro dela, e fecha as mãos em concha, como se protegesse algo raro. Respira, aliviada)
Ainda está aqui...

Será que quando a gente conta um segredo ele se perde no tempo? Porque segredo contado deixa de ser segredo, mas que sentido tem guardar uma imagem que se não revelada pode virar areia na memória? Vou contar, então, posso? Posso confiar que vocês não vão me julgar pelo que fiz, ou pelo que senti?...

Naquela dança, eu tive um desejo...Um prazer sem tamanho, que só cabia nos limites da minha pele porque eu sentia o suor escorrendo, e eu quis beijar aquele homem, e eu quis experimentar um pouco mais daquele contato na pele da boca. Porque eu queria experimentar um pouco do que se pode ser quando não se tem função definida, nome definido, RG, utilidade. Eu sentia o desejo dele todo, de comer num beijo uma fração daquela possibilidade de simplesmente estar sendo sem nenhum sentido que não fosse apenas ser-se.

(pausa)

Eu só queria dar um beijo na liberdade para saber o gosto doce e inteiro do que se perde em míseros pedaços todos os dias...

Mulher 2
Qual seria o nome dele? José? João? Jonas? John!

Mulher 3
John, eu nunca esquecerei você. Porque nós fomos eternos naquele instante. Meu irmão. Você me deixou plena e útil.

Mulher 2
John, onde é que você dorme? Eu ainda não sou livre: preciso de uma casa e de uma cama para dormir. Eu não sei dormir na casa dos outros.

Mulher 3
John, num momento de muito desespero eu pedi a Deus que me arranjasse uma ajuda. E a ajuda veio: um homem me telefonou. Aí eu chorei ao telefone. Ele disse: não chore porque chorar enfraquece. Eu disse: mas às vezes é como a chuva que se precisa quando tem estiagem demais e tudo fica muito seco. Eu lhe pedi para me telefonar de novo às seis da tarde. Ele disse que não podia. Mas às seis em ponto me telefonou.

Mulher 1
John, o que a gente faz quando o que a gente mais quer acontece? Quando a gente pede pelo milagre, e ele chega? A gente fura os olhos? Recebe a luz que cega? Foi o que aconteceu com você, por isso mendigo, por isso na rua?
(ela abre as mãos, como se deixasse escapar o que continha ali)

Mulher 2
John, por que eu me surpreendi com nosso contato? Por que a gente se surpreende em conviver só por não saber o nome? Por que contando parece loucura se foi tão simples, tão simples, sorrir e dançar com você, John? Por que contando para eles agora parece pouco, parece bobagem, se na hora era só o que se podia fazer da vida?

Mulher 3
John, eu li que a angústia é a vertigem da liberdade. No entanto eu estou tendo essa vertigem, mas sem angústia, como é que se explica?

Mulher 1
(para a platéia)
Era segredo. Não contei antes porque tinha vergonha...vergonha porque depois disso, continuei vendo mendigos sem nome, e se não fosse agora ter contado a vocês, tudo me pareceria absurdo. A vida é absurda quando ela acontece de verdade.

primeira gira com Clarice

(trechos da peça teatral "No Gosto Doce e Amargo das coisas de que somos Feitos", sobre obra de Clarice Lispector. Direção de Nill Amaral)

ATRIZ 1
Deixe ver...seu futuro...(faz um suspense)...Olha, você tem dois caminhos possíveis...Um é por ali (aponta para a direita)...Não tem muitas pedras. Tem uma cachoeira linda, linda, uma vez que você chegue lá não vai querer sair mais. Muitos recursos materiais também. Não tem muita gente, você não corre o risco de cruzar com pessoas desagradáveis. Nenhum grande amor, mas tem aqui um casamento bem sólido. Nenhum grande sofrimento, nenhum grande risco, é um caminho bastante seguro. Vida longa.
(pausa. Olha a reação da pessoa)
Agora esse outro (aponta para a outra direção)... Olha, não dá pra ver direito... Tem muito vento, é um caminho de muito vento. E muita chuva seguida de sol. Mas esse vento...não dá pra ver muito. Você é que sabe, se quer arriscar...

Atriz pega de volta a xícara. Olha para longe

ATRIZ 1
Um vento...Igual a esse. É raro ver um vento assim, suave e intenso. Dá vontade de sorrir. Já repararam que sorrimos em público do que não sorriríamos se ficássemos sozinhos? Eu, por exemplo, não gosto de rir de piadas, o que dificulta muito sentar numa roda com pessoas a certa hora da noite. Mas gosto de rir com o vento, coisa que ninguém entende.


ATRIZ 2
Eu gosto de rir quando eu chupo manga e fica aquele fiapo no meio dos dentes

ATRIZ 1
Eu gosto de rir quando eu vejo um cachorro chupando manga. Você já viu um? É uma coisa horrível!

ATRIZ 3
Eu gosto de rir quando eu vejo alguém com a roupa do lado avesso sem perceber

ATRIZ 2
Eu gosto de rir quando eu canto

ATRIZ 1
Eu gosto de rir no cinema vendo filme que todo mundo chora

ATRIZ 3
Eu gosto de rir no elevador

ATRIZ 2
Eu gosto de rir escovando os dentes

(podem ficar um tempo nesse jogo)

ATRIZ 1
Eu gosto de rir no vento

As três começam a brincar de pega-pega. O texto vai sendo dito nessa brincadeira, revezando entre elas. A cena vai num crescente.


ATRIZ 1(PARADA)
Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é.
É um cavalo preto e lustroso, inteiramente selvagem : nunca morou antes em ninguém ou nunca lhe puseram rédeas nem sela .

OUTRA ATRIZ (NO JOGO)
Eu gosto de rir em enterros.

ATRIZ 3 (PARADA)
Apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho.
Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito.

OUTRA ATRIZ (NO JOGO)
Eu gosto de rir soluçando.

ATRIZ 2 (PARADA)
A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aquilo que não tem nome: é só chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai.

OUTRA ATRIZ (NO JOGO)
Eu gosto de rir na frente do espelho

ATRIZ 1 (PARADA)
Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.

Atriz 3 toma o lugar parado de Atriz 1, mas interrompe a brincadeira.

ATRIZ 3
Eu preciso confessar um segredo a vocês...

As outras duas continuam o jogo, alheias

ATRIZ 3
Eu preciso confessar um segredo a vocês!

As outras duas seguem o jogo.

ATRIZ 3
Eu não sei como rir.

As duas param de correr

ATRIZ 2
(constrangida)
Eu também não.

ATRIZ 1
(constrangida)
Eu também não.

Tempo

ATRIZ 2
Mas a gente não estava rindo?

ATRIZ 1
A gente estava rindo?

ATRIZ 3
Não há tanto problema nisso. Pelo menos, no fim do dia, não corro o risco de me arrepender de ter sido idiota. Eu durmo bem assim, mesmo com a luz apagada.

Para Araci Cortes 4

(trechos da peça teatral "Pra você que me esqueceu", sobre a vida da atriz do teatro de revista Araci Cortes. Direção de Dagoberto feliz, com Gisela Milás, Evelyn Klein e Ivan Kraut)

ARACI

A minha alma, a minha vontade desagua doente
enferma enferma grita e desdiz a morte
Vem! Sente!
Esse vapor gelado pelos dentes
sente...
a urgência de não esperar permissão
Vem! Ó frágil reprimido
vem e afasta o perverso da submissão
Aceita o que é puro, mesmo que pareça devasso
recusa o que é pudico, mesmo que pareça sensato
me deixa assim entregue a deus
me deixa assim como deus me fez
me deixa ser seu lavapés
me deixa ser seu louva-deus
despe-se em meia-noite de lua
no meio da noite do medo
antes do amor me pegar pelos dentes
me cuspir no infinito
E gozar na minha cara.
Te amo tanto, meu amado!
Te amo!
ME AMA!
ME DÁ, DESESPERADAMENTE, ME DÁ AMOR!
Em que momento, me diz, me esqueci lá atrás,
como uma mártir acorrentada num labirinto sem volta?
Sinto que estou secando
Em calmas ondas cristalinas...

Para Araci Cortes 3

Entra Araci– cantarola Os Rouxinóis
No palco, a figura de um compositor


COMPOSITOR

Boneca de Piche, Os Rouxinóis, cabocla cheirosa, chora, violão, chora que passa, é no toco da goiaba, esse mulato vai ser meu, gemer no violão, Lamartine babo, minha favela, minha pátria, Ary Barroso, Custódio Mesquita, Morena querida, Francisco Alves, Mulato bamba, Noel Rosa, mulata revoltosa, mulato bamba, pernas, pra que te quero, Luis Peixoto, João de Barro, Palhaço não chora, Na pavuna, Benedito Lacerda, Racho Fundo, que antes era na Grota funda, cruz-credo, quindins de yayá, salada portuguesa, salve-se quem puder, flor do lodo, sinhô, Henrique Vogeler, não convém, não quero mais saber de amor, Assis valente, alma da rua, no alto da serra, chora que passa, Ismael Silva, Luiz Iglesias, vai cumprir o teu destino, Arthur costa, quero sossego, cada macaco no seu galho, velha baiana, Pixinguinha!


ARACI
(começa a falar simultaneamente na metade do texto anterior)

Eles, meninos, nomes que antes eram apenas palavras desconhecidas escrevendo palavras-semente. E eu era a alma daquelas palavras para que elas viessem ao mundo. Alguém conhecia? Não! A boca santa cantava, paria cada letra daquelas, e elas povoavam os ouvidos daquela platéia maravilhosa...e os meninos viravam homens, compositores. E as palavras, juntas, viravam história.

pausa

Hoje a boca é outra. rádio, TV, nem é de carne nem osso, sem suspiro. E deixa a memória doente.

Para Araci Cortes 2

ARACI

A minha alma, a minha vontade desagua doente
enferma enferma grita e desdiz a morte
Vem! Sente!
Esse vapor gelado pelos dentes
sente...
a urgência de não esperar permissão
Vem! Ó frágil reprimido
vem e afasta o perverso da submissão
Aceita o que é puro, mesmo que pareça devasso
recusa o que é pudico, mesmo que pareça sensato
me deixa assim entregue a deus
me deixa assim como deus me fez
me deixa ser seu lavapés
me deixa ser seu louva-deus
despe-se em meia-noite de lua
no meio da noite do medo
antes do amor me pegar pelos dentes
me cuspir no infinito
E gozar na minha cara.
Te amo tanto, meu amado!
Te amo!
ME AMA!
ME DÁ, DESESPERADAMENTE, ME DÁ AMOR!
Em que momento, me diz, me esqueci lá atrás,
como uma mártir acorrentada num labirinto sem volta?
Sinto que estou secando
Em calmas ondas cristalinas...

Para Araci Cortes 1

(trechos da peça teatral "Pra você que me esqueceu", sobre a vida da atriz do teatro de revista Araci Cortes. Direção de Dagoberto feliz, com Gisela Milás, Evelyn Klein e Ivan Kraut)


FIGURA

Araci, por que você não foi pros Estados Unidos igual à Carmem Miranda?


Araci, enfurecida, aproxima-se dele


ARACI

Porque ela deu o cu!


FIGURA

Nossa! Você não foi a maior de todas?


ARACI

Ah, quer saber? Bota no tijolo o que quiser, que eu sou de chita. Fiz meu nome com vestido de chita e rosa no cabelo, como é que eu vou me incomodar? E tem muita, muita gente que gosta!


FIGURA
(saindo do teatro)

Ô dona mestiça! Você está é com saudades de um tempo que já não é mais! Eu vou é embora que isso aqui tá com cheiro de mofo!


ARACI

Vai mesmo, vai embora, leva daqui esse despeito, ô seu merda! Dizem por aí que saudade é coisa bonita, tristeza é parte do samba. Pra que? Me diz aí, pra que tudo isso? Eu não! Carregar uma mala dessa? Daí eu chuto, chuto mesmo, a porta, a mala, essa maldita tristeza que parece que já nasceu agarrada no samba feito erva daninha, deixando tudo igualzinho enquanto o país se escangalha. Es-can-ga-lha!

pausa

Samba é a flor dessa terra, semente cravada no solo pisado que brota de teimosia. É muita petulância maquiada de malemolência, insubmissível! (pausa) Saudade...saudade, meu filho, é que nem fome. Só passa se a gente come a presença.

yes, nós somos bananas. on sale.

Em se plantando, tudo dá.
Oba! Então me dá!


Há algum tempo atrás, a relação mágica do homem com o mundo se dava no espanto com os fenômenos da natureza. Inexplicáveis, divinos, temidos. Hoje, mais esclarecidos, a relação mágica com o mundo é semelhante ao menino mimado que é cuidado por empregados: joga o brinquedo no chão, plim! Ele desaparece a reaparece na caixa! Suja toda a sala e plim! Ela renasce radiante e cheirosa! Estala os dedos e plim! Seu desejo é satisfeito! Quem disse que foram expulsos do Éden?

Pois bem. A combinação matemática do “então me dá” com a relação mágica com o mundo, bastante comum nas cabecinhas das poucas pessoas que detém o PODER DE DECISÃO, HOJE SINÔNIMO DE PODER ECONÔMICO, é a responsável por um fenômeno de cegueira que ameaça nossa Terra e nossa gente.

Mas voltamos ao nosso menininho: esse pequeno míope foi formando seu sisteminha de crenças básicas dessa forma. Ou seja, ele vê o mundo DESDE ESSE PONTO DE VISTA. Ele crê que as coisas são assim. Crê que o mundo é para ele, e a natureza, não à toa chamada de mãe, é uma fonte inesgotável de recursos.

Me dá! Me dá! Me dá!

Mas o menino se aborrece fácil. Ele é muito só. Nem com tantos empregados ele cura sua angústia... então ele se diverte. Há muita diversão por aí. Mas tudo movido a pilha! Então vamos produzir essa fonte energética, senão o mundo vai ficar sem graça! Está criada, pelo bem do planeta, a Pilha Corporation.

Mas vamos precisar dos rios, porque energia vem de algum lado, não brota da terra que nem batata! E agora, vamos brincar de mudar os rios de lugar? Canaliza aí uns três ou quatro! Faz barragem! Tá bom, vai inundar, mas fazer o que? Veado tem de monte no mundo, passarinho também! A gente precisa, senão dá apagão!

E vamos precisar das terras pra ter pasto pra carne. E vamos precisar das terras pra ter espaço pra soja e cana. Que tal tirar um pouco daquele mato inútil na Amazônia? Porque carro não anda sozinho! E o petróleo não é nosso, mas o etanol é a salvação do Brasil!

Mas deixa um pouco do mato, porque vamos precisar da Amazônia pra pegar umas plantinhas...porque não sei por que, não me sinto muito bem nesse planeta...um remedinho vai bem.

Me dá! Me dá! Me dá!
Ah, me esqueci... Ainda precisamos de mão de obra. Já descobriram que sangue, suor e lágrimas, juntos, compõem o combustível mais precioso do planeta: O humanol. E como sintetizamos o humanol? Emprego.

Perfeito. É a solução pra tanta gente que nasce por aqui se ocupar! As corporações de pilha oferecem emprego, muitos empregos, milhões deles. Pagam bem pouquinho, e em dia, o suficiente pra viver mais ou menos, e pra achar que a vida sem ele é pior. Diferente dos outros recursos inanimados, o humanol precisa de estímulo. Então dê a ele parte do Éden. Mas coloque no futuro essa parte, aí ele rende mais.

Agora, vamos dar nomes aos bois. Porque isso não é lenda nem brincadeira de criança. O ROUBO LÍCITO dos bens naturais DE DIREITO A TODOS OS SERES HUMANOS - pra não dizer de todos os seres vivos - tem seus responsáveis. Pessoas que, por herança da pré-história que AINDA vivemos, encontram- se com o poder de decidir por milhões de outras pessoas, sem ponderar os desejos e necessidades dessas mesmas. Apenas uma breve listagem desse rebanho:

- Vale do Ribeira: Grupo Votorantin, representado pelo ilustre cidadão brasileiro, o Sr Antonio Ermírio de Moraes, que insistem em construir a Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto, que apenas beneficiará sua própria empresa, a CBA (Companhia Brasileira de Alumínio). E também a Multinacional Bunge (em Cajati) – poluição do rio Jacupiranguinha – apenas um exemplo do quão interessante será um pólo industrial na região. Mas os empregos...

- O Governo Federal , que adotou o discurso “desenvolvimento é tudo”, em ações como Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) , apoiando agronegócio, hidronegócio, transgeniconegócio e qualquer negócio que faça economista bater palmas e gente pagar caro. Alguns exemplos:

1) Apoiar a construção de três megahidrelétricas no Rio Madeira, o segundo maior rio da Amazônia. Junto, nossas amigas Odebrecht (17,6%), Furnas Centrais Elétricas (39%), Construtora Norberto Odebrecht (1%), Andrade Gutierrez (12,4%), Cemig (10%) e um fundo de investimentos formado por Banif e Santander (20%).
2) Combater o desmatamento com a magnífica idéia de dar a concessão de florestas públicas para exploração comercial sustentável, praticamente deixando lobos pastoreando ovelhas.
3) A controversa transposição do Rio São Francisco (cujo benefício para a população é apenas 4%)
4) Junto ao Governo do estado de SP, ampliação do Porto de Santos , além da construção do porto privado na Barra do Icapara, em Iguape, e do Porto Brazil, em Peruíbe , pela EBX (não preciso citar o impacto junto às comunidades caiçaras locais)

- Alguns de nossos funcionários públicos que governam em benefício do privado, como o Sr Reinhold Stephanes, ministro da Agricultura, o governador Blairo Maggi (PR-MT), maior produtor de soja do país, e o governador de Rondônia, Ivo Cassol, que apóiam indiscriminadamente o desmatamento e exploração da Amazônia. Mas são bem recompensados. Por exemplo, há uma expectativa do mercado de frigoríficos de investir, nos próximos dois anos, cerca de R$ 1 bilhão em Mato Grosso. Vamos precisar de pasto, não?

- Os governos anteriores, de Pedro I ao PSDB do FHC, que desde 1500 d.c já montaram a banquinha de vende-se bananas a preço de banana, e cultivaram com afinco o campo de impunidade que permite esses absurdos – em nome da ESTABILIDADE NACIONAL! HAHAHAHAHAHAHAHA

- Isso sem falar das corporações dos veneninhos para o bem-estar das lavouras: Monsanto, Bayer, Novartis-Syngenta, Du Pont e Advanta, com sua tecnologia Terminator (genes manipulados)

Para nosso azar, essa lista é muito maior. Esses exemplos servem quase para “tomar a parte pelo todo”. O buraco é bem mais baixo.

Para nossa sorte, a cegueira é contagiosa, mas não é total. Há muitos movimentos, redes, pessoas que dedicam suas vidas a evitar que esse desastre iminente aconteça. São pessoas que não acreditam na tirania vitalícia dos grandes grupos, que não se intimidam com o seu aparente poder. E que, mais do que nunca, precisam de pessoas que também possam se somar, não apenas “fazendo sua parte”, mas fazendo em conjunto a grande parte nos toca: evoluir da pré-história. Não apenas na tecnologia, não apenas gerando pilhas, mas abrindo a mente, compartilhando, vendo o planeta e todos os seus seres não mais como um “para mim”. Isso tem o seu tempo, mas já acontece agora. No tempo presente. Eis apenas algumas, de muitas “luzes no final do túnel” da nossa terra:

Movimento dos Ameaçados por Barragens - MOAB , Movimento dos Atingidos por Barragens (Nacional), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, Conselho Indigenista Missionário - CIMI, Equipe de Assessoria e Articulação da Comunidades Negras do Vale do Ribeira - EAACONE, Coletivo Educador do Lagamar (Cananéia, Ilha Comprida, Iguape, Pariquera-Açu), Associação Rede Cananéia, Coletivo Jovem Caiçara, Partido Socialismo e Liberdade - Núcleo Vale do Ribeira, Movimento Humanista, AVV (Associação Vidas Verde), Rede MangueMar Brasil, Deputado Estadual Raul Marcelo, Comitês da Baixada Santista Contra Tijuco Alto, São Paulo Contra Tijuco Alto, Campinas contra Tijuco Alto, Instituto Socioambiental, Pastorais de Igreja Católica, Bispo da Diocese de Registro Dom Luís. Coletivo Alternativa Verde (CAVE), o Sindserve/Cobase, Rede Eco-caiçara, individualidades libertárias, membros do Centro dos Estudantes de Santos (CES), sindicalistas autônomos e anticapitalistas, ACPO - Associação de Combate aos Poluentes Orgânicos, Mongue - Proteção ao Sistema Costeiro, Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (Ibap), Aldeia Indígena Piaçaguera, IDESC - Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira , Associação Rede Cananéia, Associação dos Moradores de Bairro Ariri, além de inúmeros ativistas independentes, comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras por todo o país.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

de que lado?

quero criar MAS É FODA, tenho que fazer tanta coisa...
quero evoluir MAS É FODA, a vida tem suas mesquinharias
quero acreditar MAS É FODA, quem confia pode ser traído
quero ser feliz MAS É FODA, tem horas que o mundo cai
quero mudar o mundo MAS É FODA, tem horas que faltam forças
quero sorrir mais MAS É FODA, tem dias que não dá vontade
quero ser generosa MAS É FODA, às vezes dá medo da falta
quero ser quem eu sou MAS É FODA, tem horas que é difícil ser firme

tem horas que é difícil ser firme MAS FODA-SE, quero ser quem eu sou
às vezes dá medo da falta MAS FODA-SE, quero ser generosa
tem dias que não dá vontade MAS FODA-SE, quero sorrir mais
tem horas que faltam forças MAS FODA-SE, quero mudar o mundo
tem horas que o mundo cai MAS FODA-SE, quero ser feliz
quem confia pode ser traído MAS FODA-SE, quero acreditar
a vida tem suas mesquinharias MAS FODA-SE, quero evoluir
tenho que fazer tanta coisa... MAS FODA-SE, quero criar






A melhor das lembranças

A mão do filho pequeno fazendo cafuné no cabelo da nuca enquanto a outra mãozinha, na boca, devaneia...